Castanho
história
Parado no meio-fio da calçada fui alertado pela presença da senhora que atravessando a rua, parou ao meu lado. De soslaio observei que atentamente me esquadrinhava. Não mexi nenhum músculo para não assustá-la. Certa de que eu não a estranhava aproximou-se e me tocou. Aceitei que sua mão pousasse em meu focinho. Lentamente deslizou-a até o meu dorso e sussurrou:
- A sua figura, imperturbável chamou-me atenção, também a sua imponência, como mantém a sua cabeça alta, o brilho dourado do seu pêlo à luz do anoitecer, posso sentir a sua força interior que está além da aparência das dores e privações que parece ter suportado. Essa velha carroça repleta de papelões e quinquilharias ao qual está atrelado, não lhe é adequada, mas você a embeleza. Dá uma característica de nobreza a esse trabalho rude e inspira à visão de uma obra de arte a ser retratada.
Comovido, eu a segui com os olhos até perdê-la de vista. Imagens da minha vida começaram a me aparecer como um filme. Lembro de meu convívio com homens bons, maus ou indiferentes, o infortúnio, o apuro me lapidando.
Na região quente onde nasci o sol sempre me pareceu brilhar mais claro e a primavera ser mais perfumada! Vejo-me um potro fogoso e ágil. A minha frente, a pista, com seu tom queimado, quase sem fim. Eu, correndo velozmente, sendo treinado para ser um cavalo campeão como meu pai, sempre encorajado pelos seus relinchos.
- Vai castanho, vai...
Vivíamos felizes naquele haras.
Eu recebia a regalia de possuir uma cocheira só para mim.
Não sei se foi desdita, ou foi destino, certa noite um homem abriu sigilosamente a portinhola, entrou acompanhado de alguém de voz roufenha, que disse:
- Rápido, coloca o capuz na cabeça dele, vamos embora antes que alguém nos veja.
Colocaram-me amarrado, na carroceria coberta de um caminhão. Fui raptado, sem saber direito o que me acontecia. Uma longa viagem de fuga, começou. Eles paravam o estritamente necessário. Iriam me entregar a um receptador.
Mal me alimentavam. Passei fome e frio.
Senti falta da presença segura do meu pai, mas os conselhos dele me ajudaram e eu pinoteava resistindo aos maus tratos.
Os planos deles se complicaram. Precisaram se livrar de mim. E o fizeram da forma que consideraram mais segura, me vendendo a um circo.
Aprendi novas habilidades. Gostava do picadeiro, ouvia os aplausos e o riso das crianças. Eu pulava entre argolas de fogo, o que sempre me levava ao chamuscamento, marcas que ainda carrego.
De tempos em tempos, viajava no trailer então aproveitava para colocar a cabeça ao vento e sonhar com a liberdade. Sentia-me correndo, por campos abertos.
O tempo passou.
Uma nova lei dos homens mudou a condução dos espetáculos e os circos não podiam apresentar animais. Fui vendido.
Entregue a nova profissão aprendi a puxar pesado arado. Com o tempo minhas patas ficaram muito feridas no terreno pedregoso e o agricultor decidiu entregar-me como pagamento de dívida, ao dono de uma mercearia.
Eu puxava pesado carreto, no asfalto. À noite era colocado para descansar debaixo de um puxado, ao lado do estabelecimento. Desesperançado com o que ainda poderia me acontecer, sabendo que não poderia escolher, pois a minha sorte dependia da escolha dos seres humanos meu alento, era ouvir o rincho do meu pai:
- Vai castanho, vai...
Eu me reerguia.
Não tardou muito, para me acontecer outra mudança.
- Oh de casa! Chamou o homem, que entrou na mercearia.
- Pode pedir, moço, tenho tudo um pouco, respondeu o merceeiro.
- Será que vai vender o que eu quero comprar? É o cavalo que descansa lá fora...
Fui negociado.
E aqui estou, parado na esquina aguardando o homem que me resgatou. Ele me alimenta e repouso num abrigo seco e limpo. Nas noites frias coloca um cobertor no meu dorso. Aos domingos leva-me ao riacho, me dá banho e me escova. Em troca todos os dias espero pacientemente, até que recolha o “nosso ganha-pão”, como ele diz. É um bom dono, quando percebe que o peso é muito, segue a pé ao meu lado. Por isso me esforço para não parecer cansado. Ai vem, ele, com as mãos cheias.
- Demorei, hein, Companheiro...
Acomoda o recolhido, amarra outras bandeirolas nos varais, dizendo:
- É para enfeitar nossa carruagem... Tocando...
Essa é a minha história. Conto-a na minha linguagem de cavalo.
O Universo a interpretará e inspirará à escrita, alguém com dotes de escritor. Quem sabe os homens entendam e usem de mais compaixão e menos escravidão com os seres da minha espécie.
Entro em movimento, atendendo à ordem do meu dono.
Sempre serei filho de um campeão e relincho:
- Vou indo, pai, vou indo...
Os sininhos presos na velha carroça ouvem o corajoso cavalo e vão tilintando ao ritmo do seu passo:
Quem... foi... rei...sempre...será...majestade...
Ilustração: Fotografia de Eadweard Muybridge