Peripécias de uma gota




















A menina debruçou a cabeça. Lágrimas verteram de seus olhos. Tentou detê-las com a mão. Teimosamente, uma rolou pela face e quedou-se em seu queixo, já transformada numa Gota.
- Menina, não me deixe, gritou a Gota.
Desesperadamente, agarrou-se em seu lábio. Não resistiu. Caiu rendida ao próprio peso. Na água, formou-se um pequeno circulo, outro e mais outro. Ela afundou por dentro de leve rodamoinho.
- Oi, você é nova aqui? Ouviu alguém perguntar.
- Sim, acabei de chegar, respondeu assustada e tiritando de frio.
- Como entrou aqui? Você não é de chuva...Falou a vozinha, curiosa.
- Ai, ai, cai dos olhos da menina, reclamou a Gota, sentindo uma leve lambidinha.
- Ei, você é diferente mesmo, tome cuidado, aqui dentro alguns seres vão adorar o seu gostinho salgado...
A Gota afastou-se sofregamente e perguntou confusa:
- Onde estou e quem é você?
- Nós estamos no espelho D’Água. Neste pedaço a água não corre, sorte sua, senão teria sido engolida. Eu sou o Girino. Nasci aqui. Se quiser, podemos ficar juntos.
- Agradeço, mas não posso ficar neste lugar frio e escuro, tão diferente do meu mundo. Vou lá para cima, tentar voltar aos olhos da Menina.
- Então procure ficar longe das Algas, elas vão querer beber você, aconselhou, o prestimoso Girino.
A Gota aspirou ar o suficiente para se elevar. Leve tal qual uma bolha subiu vagarosamente, sem chamar atenção.
- Ah, agora sim, aqui na superfície terei possibilidades para achar a Menina, quem sabe ela esteja me procurando, pode estar sentindo falta de mim, sempre a defendi dos pequenos invasores que entravam em seus olhos.
Ansiosamente olhou para todos os lados. Insistiu demoradamente até sentir-se totalmente desgastada pelo esforço embalde. Pareceu-lhe mais prudente aproximar-se da margem. Encontrou abrigo no vão de uma pedra, encostou-se quietamente para descansar e pensar. Subitamente, uma Larva chegou com “cara de poucos amigos” e enxotou-a dizendo ser a dona do lugar. Desalojada, a Gota esgueirou-se, amedrontada. Contornando as raízes esbarrou na Pétala que boiava sobre a Água. Logo percebeu que ela poderia servir-lhe como refúgio e pediu:
- Pétala, você deixa eu subir ?
- Aceitando de bom grado a Pétala afundou uma pontinha. A Gota abrigou-se em seu regaço. Agradecendo enternecida, contou-lhe a sua desdita, ao que a Pétala respondeu:
- Eu fui desfolhada pelo Vento e também estou procurando a minha Rosa. Embale-me com seu peso e encontraremos ajuda.
A Gota pensou nos perigos da noite que advinha e propôs descansarem na calmaria. Até o dia seguinte estaria com as forças restauradas. Dormiu confortada pela maciez da Pétala. Acordou com os seus gritos:
- Gota, Gota, rola para fora, não aguento mais o seu peso, estou afundando!
Jogando-se na Água a Gota entrou por baixo para poder sustentá-la. Inutilmente, as forças lhe faltaram. Tanto movimento despertou as Algas e suas ávidas raízes se aproximaram. Obrigada a abandonar a Pétala, avisou-a que em breve retornaria. Encolheu-se e mergulhou em busca do Girino, ele era mais forte e conseguiria apoiá-la. Sob o ardor do Sol a Pétala secaria.
Logo encontrou o Girino que imediatamente se prontificou à empreitada e para não perderem tempo pediu à Gota que agarrasse em seu rabinho. Quando chegaram tiveram uma bela surpresa! A Pétala já fora retirada da Água. O Pé de Roseira, que esperava o Amanhecer ouviu seus gritos, pediu uma lufada ao Vento, curvou-se e apanhou-a. Salva, a Pétala lhes sorria e embora machucada, recuperava-se espetadinha num dos espinhos da Roseira.
Esse importante acontecimento renovou as esperanças da Gota, continuaria procurando a Menina. Imaginava tal cena repetindo-se com ela...
- Não vou desistir nem me entregarei à qualquer sorte. Sou uma Gota letrada, estudei sobre a água nos livros da Menina e encontrarei uma maneira de sobreviver.
Resolveu aventurar-se por esse mundo já não tão desconhecido. Nadando sempre atenta aos perigos, encontrou a folha da Nenúfar. Instalado na sua borda , o Caracol despedia-se de uma Caramuja lacrimosa. Esperou até que ele a notasse. Chamou-o de lado, contou-lhe todos os acontecimentos e pediu o seu auxílio.
- Você quer ir para o outro lado? Posso levá-la.
- Acho melhor ficar perto do lugar onde caí, Também, preciso evitar correntezas para que elas não me integrem, respondeu.
- Não seria bom se ficasse com seus parentes? Sugeriu o Caracol.
- Ah, não, sou Gota de lágrima, tenho uma missão importante e singular. Ademais, sou produto da emoção do ser humano.
- Então talvez seja melhor deixá-la em terra firme...
- Não dá, serei desidratada pelo sol ou absorvida pela Terra, objetou a Gota.
O Caracol era inteligente e bom de papo. Conversa daqui e dali, acabaram ficando amigos e o Caracol lhe confiou:
- Gota,vim aqui dar uma força para minha prima e comparecer ao enterro do Caramujo. Ele era muito respeitado, seu funeral foi bastante concorrido durante o qual conheci diversas personalidades. Creio ter encontrado uma solução para você. Monte na minha concha.
Sem dizer mais nada levou a Gota por caminhos pedregosos e entraram numa Gruta. Ali era a moradia da Pequena Sereia. Ela os recebeu penteando os sedosos cabelos com seu pente de casca de tartaruga.
A Gota observou que a pequena Sereia usava um diadema de ouro preso num barrete entremeado com as mais belas pérolas e dele pendia uma pedra preciosa que servia como um adorno entre seus olhos, mas estava quase totalmente embaciada. A Gota sabiamente pediu ao Caracol que a depositasse sobre a pedra. Com entusiasmo esfregou nela seu corpinho salgado até retirar-lhe todo o limo. A esmeralda refulgiu em todo o seu esplendor. Duas estrelinhas de luz brilharam em suas pupilas tornando ainda mais verde o enigmático olhar da Pequena Sereia.
- Como estou bonita! Ela exclamou toda vaidosa. Em agradecimento, vou satisfazer-lhe um pedido.
O Caracol contou-lhe razão da visita. A Gota falou sobre seu infortúnio e expressou o seu desejo.
- Eu o concederei, mas antes conversarei com a Água, elemento da Natureza ao qual você pertence, ela respondeu.
Convidou-os a se instalarem em sua carruagem. Conduzidos por cinco Ostras, chegaram a um local onde a Água se movimentava muito de leve. As Ostras prenderam a carruagem e eles receberam ordem de ali esperar. A Pequena Sereia nadou até uma pedra branca esculpida em forma de concha e que lhe servia como um trono. Sentou-se e entoou um silvo encantador. Repentinamente a Água jorrou em cântaros e envolveu a Pequena Sereia.
Ao mesmo tempo um inebriante cheiro de flor de Laranjeira perfumou o ar. O Sol infiltrou os seus cintilantes raios pela nuvem D’Água e formou-se o mais belo Arco-Íris!
A Gota e o Caracol olhavam embevecidos aquela cena. Até que a anteninha do Caracol captou um som discrepante na linguagem da Água. Ouviu:
- Essa Gota é uma dissidente!...Não pode negar-se a cumprir seu destino!...Todas fomos Gotas um dia!...Reunidas nos tornamos formidáveis!...Corremos para o mar!...
O Caracol permaneceu calado. Não quis alarmar a Gota.
A Pequena Sereia cantou novamente até a Água fluir mais leve. Satisfeita, voltou para a carruagem deixando na Água cristalina uma esteira de espuma que se formara em seus longos cabelos. Avisou-os que voltariam à meia-noite.
A Gota notara a manifestação da Água e passou o resto do dia ansiosa. Decidiu nada perguntar, afirmando para si mesma que haveria um bom resultado, a Pequena Sereia era filha da Rainha das Águas.
Na hora combinada, a Pequena Sereia, a Gota e o Caracol aguardavam sentados na roliça pedra.
A Água permanecia quieta. Brilhando ao luar, um ser alado pousou na mão da Pequena Sereia, abriu as delicadas asas transparentes, dizendo:
- Gota, eu sou a Libélula, vim buscá-la, pode subir no meu corpinho.
Confiante a Gota aceitou o convite. Comovida, despediu-se dos amigos:
- Muito, muito obrigada, Adeus!
A Libélula subiu pelos ares. Amedrontada a Gota olhou para baixo e foi tomada por outra grande emoção! Reconheceu o local onde a Menina se debruçara e ela caíra...
A fonte estava calma e o majestoso Chafariz descansava adormecido, com as duas bocas secas, abertas, à espera da Água.
O espelho D’Água, prateado a luz noturna fazia questão de refletir o vôo da Libélula. Pareceu à Gota que ela murmurou:
- Até um dia...
A Libélula cruzou pelo Jardim e entrou pela janela aberta da casa. No quarto, a Menina dormia. A Libélula deu um vôo rasante, batendo as asas com força. O ruído acordou a Menina, que abriu os olhos. Imediatamente a Libélula soltou a Gota. Ela caiu...
A Menina sonolenta voltou a dormir. A Gota acomodou-se feliz no cantinho do olho da Menina empurrando a remela que tomara o seu lugar.
Finalmente, voltara para casa!
Lá fora, O Caracol, encostadinho na margem, contava ao Girino as peripécias da Gota. O Pé de Laranjeira concordava embalando suas perfumosas flores. A Roseira pedia ao Vento que viesse brando ao Amanhecer para não desfolhar suas formosas pétalas. A Pequena Sereia entoava o seu canto. O silvo mágico chegou até a Gota.
- Nunca estive só. Talvez tenha acontecido porque eu acreditei, eles acreditaram, fez-se o milagre.
Em turbilhão, os acontecimentos retornaram a sua mente. Reviveu seu mais extasiante momento, contemplar o surgimento do Arco-Íris através do poder da Água, em resposta às carícias do Sol.
- Um dia a Menina voltará a chorar... Em seu âmago nenhum temor se insinuou.
- Atravessei incrível jornada, na próxima estarei preparada, experimentarei os desafios angustiantes ou prazerosos, tenho em mim essências da Menina, elas me auxiliarão. Tantas coisas podem acontecer...
Embalado por ternos pensamentos adormeceu e profeticamente sonhou:
Unido a Água
A cascata procurarei
Vou Deslizar para o Mar.
Pedirei ao Sol, Aqueça-me.
Direi, Nuvem, Sou Vapor.
Leve-me ao Infinito

Quero vagar nos olhos do Céu
Viajar no colo do Arco-Íris,
Quando o Sopro Divino me encontrar.
Em Gota vou me transformar.
E cairei
Como Lágrima de Deus.

Ilustração: Fotografia de Man Ray

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