Doroti

Novembro de 1948.
Doroti completava 12 anos.
à primeira vista, onde entrasse , chamava atenção pelo porte exuberante, a pele muito branca,contrastando com os cabelos lisos e compridos. Era a visão de mocinha bonita, no frescor da adolescência saudável. Grandes olhos verdes destacavam-se em seu rosto . Tinha um brilho intenso , mas o que mais atraia era o jeito de olhar profundo, surpreendente para quem a olhasse olho no olho.
Parecia querer tocar o íntimo da pessoa que as vezes sentia certo desconforto, como se aquele olhar tivesse o poder de desvendar mistérios.
Na pequena cidade do interior paulista onde morava com a mãe e a avó, quase ninguén trancava as portas das casas, quase todos se conheciam no bairro.
Doroti ia passar "ventando" pela vizinha que entrava pelo corredor, mas resolveu dar uma paradinha para cumprimentá-la e fixando nela o olhar diz:
- Boa tarde , dona Joana, veio tomar um cafézinho ? Sem esperar resposta saiu correndo , com os cabelos e os vestidos balançando ao vento.
- Regina, acabei de encontrar a sua filha em disparada no portão. Nossa como brilham os olhos dessa menina e ela olha pra gente de um jeito comprido, heim ?
- É , eu vivo ralhando com ela, mas não adianata , já expliquei , falei, " pare de encarar as pessoas", outras vezes ela parece estar no mundo da lua . Sabe-se lá o que meninas dessa idade tem na cabeça...
Doroti sabia dos comentários a seu respeito. As pessoas não compreendiam, não era descaramento, quando ela olhava bem retinho no olhos das pessoas, quase lia o coração delas, podia sentir a verdade ou a falsidade. Sem consciência ainda desse dom intuitivo e que não sabia explicar, escolhia as amigas, se aproximava ou se afastava por "simpatia" ou "antipatia".
No seu quarto vivia o seu mundo particular,trancaca a porta, fazia suas lições, cantava e dançava. Gostava também de tomar banho bem quentinho e quando o vapor juntava, riscava o espelho com o dedo de forma a só refletir os seus olhos. Era a hora de fazer perguntas e receber respostas que vinham do fundo da sua alma ingênua, mas sábia. O espelho era o seu confidente, perante ele adorava rodopiar, se olhar inteirinha, ali ela se imaginava um princesa de contos de fadas, artista de cinema ou cantora famosa.
Nua tocava os seios que despontavam e acariciava o ventre pensando, quem sabe, aquele ano se transformaria em mocinha, "pronta pra casar", como dizia a avó.
No mais, era uma garota comum, que cumpria as tarefas caseiras para a mãe. Ao final da tarde era liberada e por preferência ia brincar na rua, entre uma calçada e outra ela e as amigas jogavam " guerra ". Nesse jogo de bola quem acertasse mais adversários, ganhava. Doroti quase sempre vencia, Agarrava as bola com mão forte, e as arremessava com destreza.
Adorava os sábados, , saia com a mãe , ia passear na chácara de amigos ou passava o dia nadando no clube. A noite quase sempre acontecia um aniversário com música de vitrola, que virava uma "brincadeira dançante" até as nove horas da noite ! quando não havia festa os vizinhos sentavam-se em roda, na rua para comentar os fatos da semana.
Doroti e as amigas esparramavam-se nos degrau da calçada aguçavam os ouvidos para ouvir as conversa perguntando-se depois quem seria o "marido enrabichado " ou a "mulher perdida".
Mas, o domingo era dia especial. Podia acordar mais tarde, ir à missa das 10 horas. Ao meio dia, almoçava uma deliciosa macarronada italiana com frango assado, e de sobremessa, a mãe servia o tradicional manjar-branco de coco fresco ralado, com calda de ameixas pretas.
Às duas horas ia ao cinema, a matinê começava às duas e meia, sessão dupla, assistia filme e desenho animado até as seis da tarde. Depois ia tomar um todinho na "Confeitaria Acadêmica" ou um frapê na "Mina Gelada". A mãe dava o dinheiro para o cinema, mas os trocados da confeitaria ela tinha que pegar na casa do tio Alfredo.
Essa parte era muito difìcil para Doroti. O tio ficava sentado sempre na mesma cadeira. Velho e careca de cara feia olhava para ela só de esguelha, Doroti achava que ele era caolho, não conseguia olhar no olho dele e não sabia se ele gostava dela, o que sabia mesmo era que sentia medo daquela figura, que falava pouco, que mantinha o cachorro deitado aos seus pés, que de vez em quando ele parecia "soltar um pum", e ralhava com o cachorro, dizendo: "Passa, Lupin".
Doroti apreciava tudo enquanto ele a mantinha sentada em silênçio,na frente dele. Ele era irmão de seu falecido pai e aquilo parecia uma obrigação para os dois, uma visita sem satisfação. Era um alívio quando ele estendia a mão e dizia: " Pode ir,mas pede a benção". Na outra mão ele oferecia os trocados pretendidos. Assim que os recebia, Doroti agradecia mas, saía limpando a boca com nojo daquelas mãos de unhas compridas e escuras, descia as escadas do alpendre correndo com o danado do cachorro latindo atrás dela. Fechava o portão de ferro com estrondo e quando o famigerado Lupin batia de encontro às grades, ela voltava fazendo uma careta para ele, a sua vingança, o que o deixava ainda mais louco.
E foi num desses domingos que a vida de Doroti mudou.
Saiu apressada da casa do tio. As amigas a esperavam no cinema.
Parou na esquina, no fio da calçada, era rua de centro, alguns carros cruzavam nas duas direções. Um velhinho também esperava. Ela olhou-o com simpatia e e pensou: "que diferença do tio Alfredo". "Aristolino sabão , líquido medicinal" era o som da melodia que chegava até eles pela janela aberta da casa mais próxima. O velho sorriu levemente com a boquinha murcha e o "gelo" se quebrou entre eles. Também achando graça e como ele hesitasse Doroti delicadamente se ofereceu para atravessá-lo.
Ele falou com voz baixinha :
- Obrigado mocinha, é bom pássear nessa hora quentinha, mas meio perigoso também. E virando a cabeça olhou bem dentro dos olhos verdes de Doroti. Um olhar embaçado pelo tempo, mas tremendamente meigo e muito azul. Nos olhares cruzados algo inescrutável aconteceu. Doroti se rendeu, era como se ele fosse conhecido de toda vida. Era a figura do pai ou do avô que ela gostaria de ter tido. Enquanto o conduzia ela observou seu corpo franzino, as sobrancelhas brancas, o chapéu surrado, o terno escuro um pouco empoeirado e desbotado, o colete, a camisa amarelada, sentiu o cheiro indefinível, que emanava dele. Naquele momento nada importava, ele era lindo. batia a bengalinha no chão se esforçando para andar erecto guardando a dignidade de alguém que sabia da sua importância.
Quem sabe seria um velho conde ou talvez, um comendador ? do bolso do colete saia uma correntinha de ouro. Era do relógio de bolso, então, poderia ter sido um negociante ou um contador...
Como estava na hora da sessão do cinema Doroti despediu-se.
A semana passou rápida e brotaram vagas lembranças do velhinho. No domingo sem pensar direito embrulhou duas ameixas, quem sabe, o encontraria ?
Saiu da casa do tio, lá estava ele, parado só que desta vez encostado no muro.
- Boa tarde, vô, trouxe ameixas para voçê.
Um dia, o velhinho confidenciou a Doroti que morava com uma filha que o maltratava e prendia. "ela não gosta de mim, está esperando eu morrer, diz que dou trabalho e que eu esqueço tudo, mas eu lembro de muitas coisas, de quando era uma boa menina da sua idade".
( continua)

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